domingo, 16 de outubro de 2011

SOBRE LEI DOS QUADRINHOS NACIONAIS

Abaixo revelo carta enviada para Patricia Rubin (patricia.rubin@camara.gov.br), em 16 de outubro de 2011, atendendo ao convite para o debate exposto em: http://aqcsp.blogspot.com/2011/07/vamos-discutir-lei-dos-20-de-quadrinho.html

No texto abaixo faço críticas ao atual projeto, aos seus predecessores, e exponho meu ponto de vista sobre a questão.

Espero poder alimentar o debate,
Gabriel Rocha

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Muito se discute sobre uma Lei dos Quadrinhos no Brasil, mas este não é um assunto atual e teve seu ponto mais relevante com a publicação do Decreto nº 52.497, em 23 de setembro de 1963, que disciplinava a publicação de historias em quadrinhos entre outras providências. Não constando revogação expressa, o decreto deveria estar em vigor, recepcionado como lei ordinária, exceto naquilo em que for perceptivelmente inconstitucional.

Muitos se lamentam do decreto não estar sendo cumprido e outros clamam por uma nova lei que crie vantagens para publicação de historias em quadrinhos nacionais. Dito isto, gostaria de compartilhar uma visão crítica sobre a lei 1963 e dos projetos de lei que lhe copiam a essência.

No Decreto nº 52.497/63, observamos primeiro que o artigo 4º, em seu parágrafo 2º, determina que o Ministro da Educação e Cultura deveria criar as instruções para o funcionamento de uma Comissão encarregada de elaborar um Código Profissional a ser observado por artistas e autores de histórias em quadrinhos no Brasil. Em seu artigo 3º o decreto afirma que as histórias em quadrinhos, nacionais e estrangeiras não poderão conter narrativas de caráter obsceno nem encerrar abusos no exercício da liberdade de imprensa. Estes dois artigos parecem possuir um caráter de censura governamental, o que não deveria ser considerado vigente à luz da Constituição Federal de 1988 frente às suas liberdades democráticas: o artigo 5º da Lei Fundamental, que garante a inviolabilidade do direito à liberdade, em seu inciso IX define que é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença; e depois, no parágrafo 2º do artigo 220, informa também que é vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística. Ou seja, os parágrafos 3º e 4º do Decreto nº 52.497/63 não devem ser considerados recepcionados ou vigentes sob pretexto algum no que tangem as limitações que vinculem os criadores de histórias em quadrinhos.

De qualquer forma um grupo de editores de revistas em quadrinhos envolvendo: Editora Gráfica, O Cruzeiro, Editora Brasil América (EBAL), Rio Gráfica e Editora (RGE) e Editora Abril; decidiu levar a cabo sua própria auto-regulamentação em 1961, antecedendo-se em dois anos ao texto do Decreto. Trata-se do Código de Ética dos Quadrinhos Brasileiros, com suas 18 regras. Seu cumprimento não é obrigatório, mas sinaliza que a auto-regulamentação do meio dispensa os elementos coercitivos estatais em caráter de censura já visivelmente excessivos na lei de 1963.

Os artigo 1º do Decreto nº 52.497/63 também estabelece um sistema de proteção do mercado, através do estabelecimento de cotas para publicação por parte das empresas que editam histórias em quadrinhos no Brasil. Deixando de lado a discussão sobre a verdadeira natureza do sistema de cotas como meio de exclusão, pois onde se incluem alguns por meio de cotas excluem-se outros que perdem o acesso anteriormente garantido, pode-se entender que diante do fundamento básico da livre iniciativa e do princípio geral da atividade econômica que preza a livre concorrência, tal interferência governamental na forma do Decreto nº 52.497/63 é no mínimo discutível. Sendo discutível, certamente será discutido judicialmente caso venha-se a impor tal regime de cotas para as empresas que editam histórias em quadrinhos no Brasil. O texto do decreto não nos põe diante de uma solução, mas sim de um novo problema, pois as empresas e os autores estariam assumindo posições antagônicas e não de cooperação mútua.

Há de se concordar que operar sob a restrição de 60% do número total de revistas publicadas do conjunto de edições do gênero impõe uma limitação exagerada aos quadrinhos que vem de fora. Os próprios textos dos projetos de lei mais recentes falam de percentuais de 20% como sendo o "suficiente para romper a hegemonia estrangeira". A restrição exagerada talvez crie um constrangimento econômico e administrativo donde se revele mais interessante para algumas dessas empresas a abdicação da publicação de quadrinhos no Brasil. É isso que estamos buscando? Não são incomuns os casos de editoras que abandonaram suas linhas editoriais de publicação de quadrinhos no Brasil, ainda que sem tais restrições, então o que imaginar sob a ação do antigo Decreto? Portanto, não percebo a mentalidade por trás da criação da lei de cotas de publicação de quadrinhos no Brasil como algo benéfico ao mercado, e sim como grande equívoco a ser evitado.

Infelizmente a mentalidade de proteção de mercado por meio de cotas vem se repetindo. Tanto o texto do Projeto de Lei nº 6581/2006, já devidamente arquivado desde 2007, quanto sua mais nova encarnação na forma do Projeto de Lei nº 6060/2009, que certamente caminha para a mesma direção, defendem que as editoras deverão publicar um percentual mínimo de 20 por cento de histórias em quadrinhos de origem nacional, e que as distribuidoras ficam igualmente obrigadas. Mas o problema é que não há dados concretos, ou resultados de pesquisas, que informem as tiragens e os percentuais atualmente publicados por essas mesmas editoras. Talvez a lei atinja apenas os pequenos editores removendo-os do caminho das grandes empresas. Como saber? Ocorre que nas justificativas dos projetos estão ausentes quaisquer dados que informem que tais percentuais já não estejam sendo atendidos tanto pelas pequenas quanto pelas grandes editoras. Sem informações e dados concretos qualquer opinião não passa de mera suposição, especulação e até mesmo presunção.

O que diz a justificativa do Projeto de Lei nº 6060/2009? Vejamos: “...sugerimos que sejam incentivadas as empresas que comprovem a publicação de, pelo, 20 % de material nacional. O percentual estabelecido é suficiente para romper a hegemonia estrangeira, mas sem impor uma limitação exagerada aos quadrinhos que vem de fora...” – donde presume-se que o projeto de lei desconhece de tais informações, pois elas não estão ali presentes. Vai arbitrando percentuais sem demonstrar que os mesmo serão efetivos na mudança do paradigma atual. Querem que as pessoas apoiem este tiro no escuro? É preciso mais do que meras fantasias legislativas para se atingir um bom resultado para aqueles que buscam se beneficiar de uma lei dos quadrinhos.

Os projetos de lei também não prevêem prazos para suas regulamentações, nem exatamente quem será responsável por tais regulamentações. Tampouco definem penalidades para o não cumprimento de seus preceitos, ou quem ficará responsável por sua fiscalização. Também não estabelecem a criação de um órgão que cuide do assunto, não definem de onde sairão recursos para financiar o aparato estatal envolvido com a regulamentação e fiscalização da lei. Ou seja, parecem tão inócuas quanto a inútil normatização de 1963.

Vejamos alguns exemplos de como é vago o texto do Projeto de Lei nº 6581/2006, deixando margem para muitas dúvidas a respeito de sua implementação e fiscalização:

“Art. 5º O Poder Público, por meio do órgão competente, implementará medidas de apoio e incentivo à produção de histórias em quadrinhos nacionais...” – Qual órgão competente seria esse? Já existe ou teria que ser criado? De onde sairá recursos para o cumprimento de suas obrigações? Que medidas de apoio serão essas? Quem definirá quais serão as medidas de apoio a serem implementadas? O texto deixa mais dúvidas do que soluções.

“Art. 3º As empresas distribuidoras deverão ter um percentual mínimo de 20 por cento de obras brasileiras em quadrinhos entre seus títulos do gênero, obrigando-se a lançá-los comercialmente.” – 20 por cento do total de obras brasileiras distribuídas pela empresa distribuidora ou 20 por cento do total de obras brasileiras de cada editora envolvida com o gênero dos quadrinhos? Quem vai fiscalizar o cumprimento deste percentual? Quem regulamentará a fiscalização? Como será o procedimento de fiscalização? E se a as empresas não obedecerem, o que acontece? Qual a punição?

O texto do Projeto de Lei nº 6060/2009 também prevê uma regulamentação, mas igualmente não prevê prazo para que tal regulamentação seja produzida e nem define de quem será a responsabilidade por essa regulamentação. Cabem então as mesmas dúvidas.

Acredito que não é possível mensurar a existência de benefício para os autores nacionais sem a revelação de informações corretas sobre tiragens, distribuição e vendas. Qualquer medida séria tem que ter respaldo em dados concretos. Não há espaço para adivinhações. Sem prova do contrário, o sistema de cotas pode muito bem não ser uma vantagem para o mercado como um todo.

Uma lei dos quadrinhos deveria considerar a responsabilidade por conseqüências econômicas para o mercado em que pretende atuar. A lei deveria estabelecer parâmetros claros e precisos para sua eficiente regulamentação e fiscalização. Estas são algumas das razões pelo qual não tenho me animado com estas legislações de histórias em quadrinhos. Gostaria que as pessoas refletissem mais seriamente e pesassem as conseqüências antes de debruçar todo o entusiasmo sobre tais iniciativas parlamentares. Se é para haver uma lei, então que ela seja clara e eficaz em relação as vantagens que deveria auferir.

Certo professor uma vez revelou para sua turma o que o avô lhe ensinara: “sempre que lhe oferecerem algo recuse, pois a oferta será sempre do interesse de quem oferece”. Não se deve aplaudir uma lei dos quadrinhos só porque o nome promete uma vantagem que não está muito bem explicita em seu corpo normativo. Deve-se buscar informações sobre a realidade atual do mercado de quadrinhos no Brasil, e essa informação deve ser pública, para a partir daí começar a se pensar em qual será o melhor caminho a se seguir na elaboração de um lei que realmente beneficie os autores nacionais de quadrinhos. Devemos evitar passos sobre o lodoso percurso da mântica e passar caminhar com base em dados mercadológicos reais. Antes de firmado este primeiro passo não há o que se falar em lei dos quadrinhos com base em cotas.

Talvez uma lei que obrigasse jornalistas e colunistas de quadrinhos a escrever 60% de suas matérias fazendo boa divulgação dos lançamentos de quadrinho nacional independente tenha efeito mais positivo que um sistema de cotas que garante acesso de nada para ninguém. Ou outra norma que obrigue o leitor a gostar mais do trabalho de um autor nacional, ou uma norma que aumente o número de leitores de quadrinhos no Brasil. Pena que tal conjunto normativo agrediria severamente a liberdade de imprensa, as liberdades pessoais e o bom senso!

Vamos, então, em busca do bom senso? No lugar de uma inócua lei de cotas que promove a exclusão, por que não começarmos a falar em uma lei de fomento? Deixem as editoras em paz para publicar o que acharem melhor! Parem de perseguir as empresas que publicam quadrinhos no Brasil! Incentivem o surgimento de novas publicações independentes por meio de renúncia fiscal, mas sem repetir o erro na reforma da Lei Rouanet - onde se busca agredir os direitos do autor. O melhor modelo para uma norma de quadrinhos nacionais é Lei nº 12.268/06, que instituiu o Programa de Ação Cultural, esse a cargo da Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo, naquilo que tange a criação e publicação de histórias em quadrinhos. Iniciado em 2008, o programa seleciona dez trabalhos a cada edição, e os autores selecionados recebem R$ 25 mil, cada um, para produzirem suas obras.

Gabriel Rocha




Links de interesse:

http://www6.senado.gov.br/legislacao/ListaNormas.action?numero=52497&tipo_norma=DEC&data=19630923&link=s

http://legislacao.planalto.gov.br/LEGISLA/Legislacao.nsf/viwTodos/05EBF01A9AA4E5C6032569FA00543E64?Opendocument

http://www2.camara.gov.br/legin/fed/decret/1960-1969/decreto-52497-23-setembro-1963-392527-norma-pe.html

http://www.lexml.gov.br/urn/urn:lex:br:federal:decreto:1963-09-23;52497

http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao;jsessionid=401CF544041C9F724C6412400B9AD6EC.node1?idProposicao=313140&ord=0

http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=521519

http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=450497

http://www.cultura.sp.gov.br/StaticFiles/SEC/Incentivo%20a%20Cultura/Lei_12268-06_Incentivo_Cultura.pdf

http://www.cultura.sp.gov.br/portal/site/SEC/menuitem.555627669a24dd2547378d27ca60c1a0/?vgnextoid=b787a2767b3ab110VgnVCM100000ac061c0aRCRD

http://www.uems.br/padadi/texto11.html

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